Pibidianos da UFPA são destaque no X ENALIC e conquistam o Prêmio Paulo Freire
Estudantes de Licenciatura em Química vivenciam uma experiência única ao desenvolverem práticas pedagógicas em unidades de atendimento socioeducativo do Pará, unindo ciência, ludicidade e escuta ativa. O reconhecimento desse trabalho veio hoje, em Brasília, com a conquista do Prêmio Paulo Freire no X ENALIC.
Como ensinar Química para adolescentes e jovens em contextos de privação de liberdade? Foi com essa pergunta que o grupo de estagiárias de um Projeto de Extensão e Ensino do curso de Licenciatura em Química da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus Ananindeua, iniciou sua jornada em três unidades de atendimento socioeducativo localizadas no município: CESEF (unidade feminina) e UASES II e III (unidades masculinas). Muito além das paredes da escola tradicional, o desafio foi construir pontes entre o conhecimento científico e a realidade de adolescentes e jovens em privação de liberdade, nestes espaços que, também, são desenvolvidos processos formais de escolarização.
O estágio supervisionado realizado por meio de Projetos nas unidades da FASEPA em, Ananindeua em parceira com a Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA), proporcionou uma imersão profunda em um ambiente desafiador, potente e significativo para a prática docente, transcendendo para novas leituras de mundo, da cidadania e do direito à educação Ao entrarem nesses espaços, as licenciandas perceberam que ensinar Química deveria ultrapassar os limites dos livros didáticos, das aulas expositivas, devendo desenvolver uma escuta ativa com empatia e uma prática docente lúdica, principalmente, considerando que os jovens atendidos praticaram algum ato de contravenção penal e estão sujeitos às medidas socioeducativas visando sua proteção e ressocialização. Logo, é um desafio estabelecer uma relação positiva da associação escolar como inclusão, proteção e aprendizagem, pois muitos desses jovens também são estigmatizados pela dificuldade de permanecer satisfatoriamente no sistema educacional regular.
Da universidade para a socioeducação
A proposta de intervenção surgiu a partir de uma articulação entre a Faculdade de Química, mediante aos Projetos de Ensino (CAPES/PIBID) e o de Extensão (PROEX) coordenados pela Profa. Janes Kened (UFPA), com a SEDUC/PA e as unidades da FASEPA, em Ananindeua, visando promover uma prática de ensino inovadora e socialmente comprometida, onde a presença da ciência pode significar também o fortalecimento da cidadania. Atualmente, as estagiárias da UFPA são Adriana Miranda, Ana Campos, e Katy Carvalho e Rayane; com apoio e supervisão da Profa. Rosana Passos e da diretora da escola que oferta tal modalidade de ensino, a Profa. Regina Guimarães, ambas da SEDUC/PA.
"Oferecer uma educação humanizada para diversos públicos, modalidades e espaços educativos enriquecendo o repertório formativo dos alunos de licenciatura em química. Ao assumir o compromisso de realizar práticas de ensino diversificadas nas condições e especificidades das unidades socioeducativas por intermédio de jogos, experimentos e adaptação lúdica de materiais, conectamos de forma interdisciplinar os conteúdos específicos de química, estimulando aprendizagens e ofertando uma experiência educacional positiva e inspiradora através desta ciência. Também precisamos lidar com os aspectos afetivos e sociais desse contexto que tais jovens estão passando. Isso transcende nossa formação acadêmica e muitas vezes nossa estrutura psicológica, mas, seguimos neste compromisso social de nossa Universidade através da formação de profissionais preparados para atuação múltipla no campo educacional para além dos muros da escola regular sob os quais estamos mais habituados. É o ensino de química transformando vidas, dando esperança de dias melhores." - Destaca a profa. Janes.
Química viva: jogos, filmes livretos e experimentos
As estagiárias desenvolvem atividades dinâmicas que integram: jogos, filmes, livretos didático científicos e experimentos simples, todos cuidadosamente contextualizados com o cotidiano dos adolescentes e com as especificidades de segurança dos espaços. Uma das experiências interdisciplinares e lúdicas mais marcantes foi a aplicação do jogo autoral elaborado no âmbito do PIBID “Caminho dos Orixás: Conquista Elemental”, uma proposta pedagógica que associa os elementos químicos às divindades das religiões afro-brasileiras. Nesse jogo de tabuleiro, os participantes avançavam por territórios do mapa do Brasil ao responderem perguntas interdisciplinares sobre conteúdos de Química (como reações de combustão e composição da água, por exemplo), elaboradas considerando características dos orixás Xangô, Oxum, Oxalá e Oxóssi. O jogo promoveu o engajamento com a química, a valorização da ancestralidade e da cultura afrodescendente, tema essencial para o desenvolvimento de uma educação antirracista e plural, potencializando também a formação docente nesta perspectiva.
O jogo é uma proposta lúdica e educativa composta por diversos elementos que estimulam o aprendizado e a interação entre os participantes. O tabuleiro apresenta o mapa do Brasil dividido por estados; configurando-se nele o espaço central onde ocorrem as dinâmicas e desafios da atividade. O kit didático contém cartas temáticas que apresentam perguntas associando o conhecimento científico; que abrange conteúdos como elementos químicos, questões ambientais e desafios culturais; com os quatro elementos clássicos da natureza relacionado aos orixás (Água: Oxum, Fogo: Xangô, Ar: Oxalá, Terra: Oxóssi). A jogabilidade passa pela conquista dos estados envolvendo uma dinâmica ativa para promover um ensino de química que aborda a diversidade religiosa e cultural do Brasil.
“O jogo "Química dos Orixás" foi desenvolvido para realizar a contextualização de um filme utilizado para o dia da Consciência Negra. No primeiro momento, as expectativas nem eram tão grandes quanto ao desenvolvimento do jogo, mas os próprios socioeducandos contribuíram muito para a aprimoração dele. Com base na experiência didática, elaboramos um relato de experiência aprovado em evento científico nacional apresentando a produção autoral produzida pela equipe. Foi uma experiência que sem dúvidas mudou o rumo da minha carreira profissional e ultrapassou todas as minhas expectativas. É uma oportunidade que nos permite acreditar no futuro da educação.” - Conta Adriana Miranda, uma das estagiárias envolvidas.
Outro destaque foi a aula prática de Fermentação Alcoólica, que utilizou materiais simples como garrafas PET, açúcar refinado, sal de cozinha, fermento químico e biológico, farinha de trigo e balões. Os adolescentes foram desafiados a montar reações experimentais e observar, na prática, os efeitos da fermentação e da liberação de gás carbônico. A atividade possibilitou a comparação entre os fermentos biológico e químico, promovendo discussões sobre transformações químicas, produção de energia, alimentação e sustentabilidade. A proposta se mostrou eficaz tanto do ponto de vista técnico quanto pedagógico, incentivando o pensamento científico e o trabalho em equipe. A experiência educacional se transformou em relato de experiência também submetido ao evento nacional na área de ensino.
“Foi muito gratificante levar a química para os alunos de forma lúdica e divertida. Deu pra ver a alegria estampada nos rostos dos alunos e das alunas ao realizarem a prática de fermentação alcoólica, além deles se divertirem, eles de fato aprenderam sobre o tema abordado, o que encheu meu peito de orgulho. Com certeza foi e está sendo uma das minhas melhores experiências como uma futura professora de química” - Explica Ana Campos, uma das estagiárias responsável pela condução da prática.
Outra proposta didática que se revelou extremamente significativa durante as aulas de Tabela Periódica foi a utilização de um livreto científico autoral como recurso didático, especialmente por potencializar o envolvimento dos estudantes com um tema que, tradicionalmente, apresenta-se como denso e abstrato. Afinal, abordar a Tabela Periódica trata-se de uma vasta gama de elementos, suas classificações, aplicações sociais e, inevitavelmente, de figuras científicas cujas descobertas transformaram o mundo.
“ Marie Curie: Mãe da Radioatividade foi o livreto utilizado por homenagear uma mulher nas ciências exatas, inspirando meninas e mulheres a se reconhecerem como potenciais protagonistas no campo científico. O livreto apresenta a biografia de Curie, enfatizando suas descobertas do rádio e do polônio, elementos radioativos marcantes tanto pelos riscos que oferecem à saúde quanto pelas inúmeras aplicações positivas na medicina e indústria.
A utilização desse material com os (as) socioeducandos(as) contribuiu para dinamizar o processo de aprendizagem, aproximando-os do conteúdo de maneira mais contextualizada e acessível. Durante a leitura, surgiram dúvidas e curiosidades, como, por exemplo, em relação ao termo “Pechblenda”, o mineral que Marie Curie estudou e que foi essencial para identificação dos elementos radioativos. Esse movimento espontâneo de questionamento evidenciou o quanto a proposta foi capaz de estimular o pensamento crítico e a ampliação do vocabulário científico.
Além disso, o livreto inclui um cordel, gênero literário tradicional e popular, estruturado em versos rimados, cujo a inserção buscou ampliar as possibilidades de leitura e interpretação dos alunos, conectando ciência e cultura de maneira sensível e criativa. A reação da turma foi bastante expressiva, pois, muitos conheciam o cordel enquanto manifestação cultural, mas poucos haviam tido contato com um texto dessa natureza abordando um tema científico. O produto está disponível gratuitamente na plataforma EduCapes.
Nesse contexto, a estagiária Katy Carvalho compartilhou sua percepção sobre a experiência:
“Poder utilizar um dos livretos que produzimos ao longo desses anos de curso foi uma experiência muito gratificante. O envolvimento deles, a colaboração na leitura e, principalmente, o espanto ao se depararem com um cordel científico, muitos já tinham ouvido falar de cordel, mas nunca tinham lido um com esse enfoque químico, marcou bastante para mim. Foi muito bonito observar a forma como se organizaram para dividir as estrofes, como se entregaram à leitura.”
Por fim, ela ressaltou em sua fala, um aspecto relevante durante observações em sala de aula:
“Além disso, fiquei especialmente feliz quando levantaram questões importantes, como a valorização da mulher no meio científico, que também é um tema abordado no livreto. Eu confesso que não estava esperando. Quando eles trouxeram essa pauta, senti um orgulho enorme, porque percebi que estávamos, de fato, seguindo pelo caminho certo. Fiquei muito feliz em participar dessa produção autoral inovadora para mim enquanto futura professora”.
Observam-se que as atividades desenvolvidas vão além da mera transmissão de conteúdo, promovem reflexões sobre questões sociais relevantes de forma interdisciplinar e/ou contextualizada, como a presença e a valorização das mulheres na ciência, as questões religiosas e culturais, a diversificação do ensino com jogos, experimentos e livretos. Demonstrou também a potência de estratégias pedagógicas que integram múltiplas linguagens no processo de ensino- aprendizagem.
Escuta, cuidado e transformação
Além das práticas lúdicas e experimentais, o estágio foi atravessado por momentos de escuta sensível, trocas afetivas e reflexões profundas. As estagiárias vivenciam relatos dos adolescentes, muitas vezes entre uma aula e outra, respeitando sempre os limites éticos, emocionais e as trajetórias individuais de cada participante.
Um dos adolescentes, em fala anônima, compartilhou: “Nunca pensei que ia gostar de Química. Aqui a gente aprende de um jeito diferente, mais legal e divertido.” Outro revelou, com brilho nos olhos: “Gostei tanto das aulas que agora também quero ser professor de Química.”
Essas manifestações espontâneas dos socioeducandos mostram o impacto que a educação pode ter quando ela é mediada com escuta, cuidado e intencionalidade pedagógica. Em uma despedida carinhosa, um dos adolescentes disse: “Muito obrigado por tudo, pelas aulas, pelos conselhos que vocês nos deram. Que dê tudo certo na carreira de vocês e que consigam conquistar o que sempre sonharam. Gostei muito de passar essas aulas com vocês e aprender coisas novas. Vou levar isso pro resto da minha vida.”
A educadora da unidade relata mudanças significativas no comportamento e na autoestima dos jovens ao longo das atividades. O contato com a universidade e com metodologias inovadoras fortaleceu os vínculos com o conhecimento, despertando nos adolescentes o interesse pela ciência e pela aprendizagem.
“A contribuição do trabalho das estagiárias estabelece um clima de esperança em nossas aulas, levando o educando a ter novas experiências e entender que estudar é um novo caminho que eles precisam conhecer, usufruir para alcançarem seus sonhos, objetivos de um presente e um futuro melhor.” - Diz a professora Rosana Passos.
A direção da escola destaca que “A experiência vivida pelas estagiárias é de suma importância, considerando que favorece, ainda em sua formação acadêmica, um olhar diferenciado a essa clientela, pois estão presentes na sala de aula, mesmo que em outros moldes, mas o direito ao ensino das componentes curriculares obrigatórias é mantido e executado. Tais adolescentes são fruto de uma sociedade que usurpou os seus direitos e que de alguma forma a escola tenta recuperar. Estar em cumprimento de medida socioeducativa é uma grande prova da incompetência do poder público garantir os direitos desses adolescentes e/ou jovem.” - Diz a diretora Regina Guimarães.
E o que fica depois?
O projeto segue como inspiração e gerou desdobramentos, como a produção de novos materiais didáticos com enfoque social e a proposta de extensão do estágio para futuras turmas . A professora Janes Kened afirma:
“O alcance que temos através da educação de qualidade em espaços que muitas vezes são esquecidos pelas iniciativas do poder públicos, ou até mesmo, desqualificados em função da trajetória infracional de alguns jovens. É importante para atuação e formação docente inovadoras e socialmente engajadas, pois é reflexo das condições reais do mundo atual. É inegável que precisamos ter coragem para viver e enfrentar os desafios de nossa existência. Alguns jovens têm seu caminho atravessado por outras referências e a educação precisa ser ressignificada na trajetória deles. Através da química, promovemos momentos de leveza, aprendizagem e encantamento com o aprender. Temos esperança de dias melhores e na mudança das vidas desses socioeducandos. Precisamos de fomento para custeio de ações como essa, pois todas as atividades e materiais produzidos têm os custos arcados pela equipe. Até isso faz parte da luta de formar docentes empenhados na qualidade profissional independente do espaço e contexto que estejam inseridos”.
A experiência nas unidades de atendimento socioeducativo deixou uma marca profunda nas estagiárias e nos(as) adolescentes. E ensinou, acima de tudo, que o ensino de Ciências pode e deve ser uma ferramenta de emancipação.
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